Sinopse Arqueiro: O governo decreta que as mulheres só podem falar 100 palavras por dia. A Dra. Jean McClellan está em negação. Ela não acredita que isso esteja acontecendo de verdade. Esse é só o começo… Em pouco tempo, as mulheres também são impedidas de trabalhar e os professores não ensinam mais as meninas a ler e escrever. Antes, cada pessoa falava em média 16 mil palavras por dia, mas agora as mulheres só têm 100 palavras para se fazer ouvir…, mas não é o fim. Lutando por si mesma, sua filha e todas as mulheres silenciadas, Jean vai reivindicar sua voz. (Resenha: Vox – Christina Dalcher)

Opinião: Após um hiato de bons anos em que o gênero distopia limitou-se a nos trazer sagas infanto-juvenis, as histórias adultas, com forte teor, alerta e preocupação sociais, retornaram de forma pesada às livrarias na esteira do sucesso da adaptação televisiva de O Conto da Aia, de Margareth Atwood. Dos tempos em que visionários como Orwell, Huxley e Zamyatin alertavam para dominações governamentais, influenciados pela sociedade de seu tempo, desbravamos, agora, o recrudescimento do machismo, patriarcado e poderio dos homens em relação às mulheres. Sinais já claros dos tempos atuais ou alertas visionários para um futuro provável?

A subserviência da mulher em algumas partes do mundo, notadamente nos países islâmicos, é algo que sempre chocou o ocidente, mas que ficava restrita a pequenos grupos. Não havia nada muito além da simples curiosidade cultural. Em tempos mais recentes, a ascensão de governos de extrema-direita com inclinações totalitárias passou a ameaçar as tais liberdades individuais e nos demos conta de que “a cultura de lá poderia chegar nos lados de cá”. A literatura, então, mergulhou em ideias não tão fictícias assim, e vem nos trazendo possibilidades de sociedade assustadoras, mas extremamente plausíveis. O recente O Poder, de Naomi Alderman, e o já citado precursor O Conto da Aia, são os exemplos de maior sucesso em vendas e em cenários catastróficos imaginados.

A história já ensina que em momentos de tensão política e social é preciso união. As pessoas não podem se calar. Ops! Mas e se o governo conseguir exatamente isso? Ao calar a voz das mulheres contando com o silêncio tolerado dos homens, para onde vai essa união? É exatamente assim que a distopia Vox, de Christina Dalcher, imagina um futuro não tão distante para os Estados Unidos sob o comando de um presidente claramente inspirado no mandatário atual, Donald Trump. Apesar de algumas críticas bem diretas às políticas do presente, Christina resiste à tentação de produzir um manuscrito panfletário e consegue desenvolver uma distopia original e vigorosa. Naufraga em um final que perde fôlego e frustra leitores que se entregaram de corpo e alma à narrativa, mas que talvez, e só talvez, se justifique pela ambição de dar sequência em um segundo volume, desnecessário a meu ver.

Vox se constrói em cima de uma das mais, senão a maior de todas, armas que os humanos possuem: a voz. Ao calar uma parcela significativa da população, as mulheres, um governo ditatorial escondido sob as cortinas da democracia impõe uma dominação fácil, eficaz e sem necessidade de grandes revoluções. Os homens no comando, sob a anuência dos homens comandados, baixam leis, decretos e criam até mecanismos de choque para limitar o número de palavras diárias proferidas pelas mulheres. São 100 por dia. Mais do que isso resulta em tortura, choque e se elas exagerarem, o final pode ser realmente um final.

Inventivo, genial, chocante e bem amarrado em seus detalhes, Vox consegue ser crível e provocar reflexão. Nada nessa ficção é exagerado. Talvez pior do que pensarmos em um governo capaz de atos assim, é concluirmos que dentro de nossa própria família esses atos possam ser senão aceitos, pelo menos tolerados. E é no seio familiar da protagonista Jean que vai se desenvolver o ápice da história. As relações entre marido, filhos e filha são tensas e mostram que é preciso muito pouco para “fazer a cabeça” de alguém. É pelos adolescentes e jovens que se começa uma revolução silenciosa, com perdão do trocadilho.

Colocar um fim ou criar limitadores ao “excesso de liberdade” é algo que cada vez mais vem sendo soprado, ou falado claramente, em discursos tanto da esquerda quanto da direita. Ideias assim não possuem ideologia, servem apenas a um deus, o poder! A literatura cumpre seu papel em dar asas à imaginação e provocar nossa reflexão sobre que sociedade realmente queremos, independente de gênero, raça, orientação sexual ou religiosa. Cabe a nós – sempre caberá a nós, consciência, informação e discernimento suficientes para fazermos nossas escolhas. Se você tem alguma dúvida da sua importância em todo esse processo, experimente falar 100 palavras por dia.

Compre na Amazon

//

Da Autora leia também:

Questão de Classe

Vox

A Autora: Christina Dalcher é linguista e professora universitária com doutorado pela Universidade de Georgetown. Seus contos figuraram em mais de 100 publicações ao redor do mundo. Ganhadora de diversos prêmios, foi finalista do Bath Flash Award e indicada ao Pushcart Prize. Ela vive em Norfolk, Virgínia, com o marido.

Compartilhar
Artigo anteriorResenha: Mitologia Nórdica – Neil Gaiman
Próximo artigoResenha: Brisingr – Christopher Paolini
Jornalista e aprendiz de serial killer. Assumidamente um bookaholic, é fã do mestre Stephen King e da literatura de horror e terror. Entre os gêneros e autores preferidos estão ficção científica, suspense, romance histórico, John Grisham, Robin Cook, Bernard Cornwell, Isaac Asimov, Philip K. Dick, Saramago, Vargas Llosa, e etc. infinitas…

Deixe uma resposta