Sinopse Companhia das Letras: O Tiradentes explora aspectos poucos conhecidos da vida privada do mártir da Independência. O livro de Lucas Figueiredo também lança um novo olhar sobre sua figura histórica, símbolo imortal da cidadania indignada pelos desmandos da opressão. Delatado por corruptos e covardes interessados em salvar a própria pele, o alferes de cavalaria Joaquim José da Silva Xavier foi executado em 21 de abril de 1792, num patíbulo montado no Rio de Janeiro para atemorizar os súditos coloniais da coroa portuguesa. Seu exemplo de coragem e dignidade em nome dos ideais libertários da Inconfidência Mineira ficou amplamente documentado nos autos do processo viciado que o vitimou. Menos de cem anos depois da morte infame, com a proclamação da República o suboficial mineiro entrou no panteão dos heróis da pátria, enquanto seus algozes foram relegados ao lixo da história. No entanto, muitos aspectos da biografia do ilustre alferes permanecem semi-ocultos na obscuridade de arquivos pouco explorados. Premiado repórter e escritor, Lucas Figueiredo propõe uma nova abordagem biográfica de Tiradentes. (Resenha: O Tiradentes – Lucas Figueiredo)

Opinião: Nos idos dos anos 1700, nos caminhos da Serra da Mantiqueira, havia um bando que tocava o terror assaltando e matando os viajantes que por ali passavam. O comando desse grupo estava nas mãos de um bandido conhecido como Mão de Luva. E quando a situação ultrapassou os limites do tolerável, a Coroa Portuguesa decidiu intervir. Através do então governador das Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses, veio a ordem de se elaborar um planejamento para perseguição e prisão do bando. Planos feitos, ataque pronto para ser deflagrado, a autorização final só viria a ocorrer muitos meses depois. A ação foi exitosa, o bando foi preso, mas calhou de com Mão de Luva serem apreendidos documentos que apontavam a ligação de diversos nomes da tropa de segurança com o bandido. Aliás, sobrou até para o governador mineiro, provável beneficiário, ou “sócio”, de parte dos lucros da bandidagem. Em resumo, o governo tolerava a violência desde que levasse “o seu por fora”.

O episódio acima consta nos capítulos iniciais de O Tiradentes – Uma Biografia de Joaquim José da Silva Xavier. O conhecido herói nacional da Inconfidência atuava na região da Serra da Mantiqueira no período em que o bando de Mão de Luva comandava a criminalidade, contudo foi afastado do centro das operações coincidentemente no momento em que o governo decidiu fazer valer a lei. O senso de justiça e honestidade do alferes já era evidente na ocasião e parecia não agradar tanto aos mandatários da capitania.

Entre nebulosas passagens biográficas, cenas cotidianas de formação e atuação pessoal e profissional, e conhecidíssimos fatos históricos, a biografia de Tiradentes apresentada por Lucas Figueiredo se destaca por ignorar o mito e focar no homem. Longe da figura construída pelo imaginário nacional, carente de líderes quase mitológicos que fizessem frente ao panteão europeu, o alferes mineiro era tão ambíguo e falível como qualquer outro. Despido do manto de libertador nacional, surge alguém com interesses pessoais bem claros e que tem neles o motivo de sua revolta contra o domínio português. A liberdade defendida pelos conspiradores mineiros, por exemplo, não abrangia os escravos – todos eles, em maior ou menor grau, proprietários de negros.

Inevitavelmente a narrativa da vida de Tiradentes, a certa altura, vai se confundir com a conspiração contra Portugal. A partir desse ponto, a fartura de material tanto conhecido quanto inédito ou pouco explorado, vai dar ritmo e tom quase jornalísticos para a obra. E novamente vamos perceber que a historiografia preferiu romantizar os fatos. Havia na Inconfidência Mineira mais improvisação do que estrutura concreta. O desejo de deflagrar uma revolta esbarrava na falta de apoios maciços reais. Nada disso desmerece a atitude do grupo, mas serve para reforçar o quanto os fatos históricos vão sendo adaptados de acordo com os interesses de quem detém poder.

A despeito do fracasso do movimento, cujo desfecho é amplamente conhecido, a Inconfidência Mineira serviu claramente para semear ideias, sentimentos. Tiradentes, a despeito de seus interesses pessoais, foi alguém que vestiu os ideais de libertação sem medo e amplamente debateu e buscou convencer as pessoas a se juntar ao grupo. A conspiração que se desenhava em fugidias reuniões noturnas, a certa altura corria de boca em boca tamanha a ousadia e fervor do tal alferes. Alferes este que acabou julgado e condenado como líder de um movimento do qual ele foi o maior entusiasta, mas que pouco ou nada liderava – Tomás Antônio Gonzaga era o verdadeiro cabeça do grupo.

A escrita ágil e envolvente de Lucas Figueiredo faz de O Tiradentes uma biografia fluida. É uma leitura rápida e que traz aos leitores uma bagagem de conhecimento sem igual. Chega a ser clichê dizer que é importante conhecer nosso passado, mas em tempos de fake news e ondas de boatos, biografias e obras históricas são fundamentais para nossa formação enquanto cidadãos. Mesmo episódios ocorridos lá nos tempos de Brasil Colônia têm muito a ensinar e contribuir para nos entendermos enquanto nação. Muitas práticas ainda imperam e insistem e persistem em não se dobrar. Para mudar é preciso dar o primeiro passo, mesmo que este fracasse.

Avaliação: 5 Estrelas

O Autor: Lucas Figueiredo nasceu em Belo Horizonte, em 1968. Jornalista e escritor, trabalhou para veículos como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, BBC Radio e The Intercept. Atuou ainda como pesquisador da Comissão Nacional da Verdade e consultor da Unesco. É autor de seis livros-reportagem.

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Jornalista e aprendiz de serial killer. Assumidamente um bookaholic, é fã do mestre Stephen King e da literatura de horror e terror. Entre os gêneros e autores preferidos estão ficção científica, suspense, romance histórico, John Grisham, Robin Cook, Bernard Cornwell, Isaac Asimov, Philip K. Dick, Saramago, Vargas Llosa, e etc. infinitas…

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