Sinopse Morro Branco: Foi na literatura que Apollo Kagwa encontrou refúgio depois de seu pai abandoná-lo e é do amor aos livros que ele faz sua renda, com um negócio chamado Improbabilia. Ele está se adaptando à nova rotina depois de ter um filho com Emma, sua esposa bibliotecária, quando algo nela muda. A falta de energia e de interesse da mãe pela criança poderiam ser sintomas de uma depressão pós-parto – mas quando Emma toma uma atitude drástica, fica claro que o problema é mais grave que isso. Agora, em busca de sua família, Apollo vai descobrir o que se esconde nas sombras de Nova York. Nesta jornada sombria, ele encontrará lugares há muito perdidos e aprenderá a temer mais as nuances das pessoas que ama do que as lendas que se concretizam diante de seus olhos. Em Nova York, nem tudo é o que parece. (Resenha: Changeling – Victor LaValle)

Opinião: “Este conto de fadas começa em 1968…” e se estende pelas décadas seguintes embaralhando uma diversidade de temas, assuntos, questões sociais e mitológicas, além de muita literatura. É a vida de Apollo, Emma e Brian. Um conto de fadas moderno que une elementos de terror a um realismo fantástico bem incomum na literatura atual. Crível, verossímil, envolvente e com originalidade de sobra em meio a mesmice das produções do gênero. Porque na grande metrópole onde nem sempre se dorme, há muitas coisas ainda ocultas dos desatentos olhos humanos…

Pense que a vida em Nova York não é fácil, tampouco é o glamour vendido aos nossos desejos de turistas tupiniquins. Nos subúrbios, bairros distantes, ilhas e florestas ao seu redor, vive uma miscelânia de famílias que enfrentam dia a dia os mesmos problemas que nós. Muda-se basicamente apenas o idioma. Essa luta é encarada de várias formas, depende de cada pessoa. E para Apollo, garimpar livros antigos e encontrar ali a fonte de sua renda é mais que uma paixão. Casado com Emma, uma bibliotecária, os dois constroem a mais que normal vida de qualquer ser humano desde que o mundo se entende por “civilizado”. Casados, trabalham para construir seu patrimônio e levar uma vida feliz. E a felicidade vem com o filho Brian, nascido numa aventura na escuridão de um metrô.

Pense que a vida em Nova York esconde dos olhos humanos lendas, crenças, sociedades, adorações, seitas, mitologia. Não é porque vivemos em um mundo totalmente conectado, no auge da evolução tecnológica, na metrópole pulsante dos Estados Unidos que a fantasia simplesmente deixou de existir. Não, meus amigos. Qualquer cidade neste planeta não está imune a tudo aquilo que vive oculto aos olhos da maioria. Sim, porque há um grupo, pequeno, que sabe, convive, estabelece pactos, alimenta ou deixa-se alimentar pelo desconhecido. Pelo que está além da pura racionalidade. Nova York não escapou disso. Pelo contrário. Por lá, há muito o que esconder e há muito onde se esconder.

Changeling une as duas Nova Yorks. A vida diária de Apollo e sua família encontra o caminho misterioso de um ritual tão velho quanto a própria cidade, desembarcado no cais junto a imigrantes noruegueses. E lança a eles e a nós, leitores, em uma aventura que reúne os melhores elementos de contos de fadas e criaturas místicas ao mais real do racismo, da desigualdade social, dos dramas cotidianos das famílias, dos segredos preservados e das tradições mantidas. O livro vai do mais arcaico mito até um sofisticado sistema de hackeamento. Une floresta e cidade. Sacrifícios de vidas e aplicativos de celular.

Victor LaValle construiu uma moderna fábula fantástica sobre como o horror está mais presente cá no mundo real do que na ficção rasgada. Em Changeling ele explora a vida de uma família em busca da mais simples felicidade de viver seu dia a dia. Mas que esbarra nas dificuldades do cotidiano e precisa se equilibrar na corda bamba para manter a persistência. Para não sucumbir. As primeiras partes da extensa obra focam exatamente nisso. Como manter a rotina, como criar seu filho, como resistir aos desânimos que nos abatem, como tomar cuidado para sua cor de pele não se tornar um problema porque você está num local “branco demais”. Quando o fantástico entra em cena, ele convence por mais absurdo que possa parecer aos leitores menos dotados de senso imaginativo. E esse fantástico traz elementos de terror com cenas de chocar e de provocar embrulhos no estômago. Os personagens são lançados em uma corrida pela vida em nome do amor que une uma família. E acabam cometendo atos que jamais poderiam imaginar.

“Até que ponto as pessoas vão para acreditar que ainda são boas?”

Dificilmente os leitores vão encontrar em meio aos lançamentos dos anos 2010 uma obra tão original e com tantas características distintas quanto em Changeling. Nada na narrativa aparece de forma gratuita e até mesmo os pesadelos mais estranhos encontram, mais cedo ou mais tarde, uma explicação convincente e conectada com tudo o mais que é narrado. Por que tudo é muito bem explicado e amarrado. Até mesmo o final, fantástico ao extremo pelos padrões de uma Nova York do século XXI. Mas mesmo no caos, conseguimos perceber que é possível passar despercebido quando o individualismo predomina e as pessoas preferem olhar sem enxergar.

Apesar de extensa e pra lá de detalhista, a obra de Victor LaValle engole o leitor. Seu estilo de narração, com capítulos curtos e cenas que vão se sucedendo em um suspense crescente, envolvem de uma forma única. É assim que mal percebemos quando os personagens cruzam a tênue linha que separa o real do fantástico. Tudo se conecta muito bem. E sobra um bom espaço para a personagem Emma desvendar um pouco do Brasil, bem representado em todas as passagens citadas pelo autor.

Changeling foi uma das maiores surpresas literárias recentes que tive. Rapidamente, ainda muito distante do fim, a história já tinha me conquistado como uma das melhores que li. E tudo só melhorou até o desfecho. Um conto de fadas moderno que dispensa o felizes para sempre. Porque nos mostra que o mais importante é ser feliz um dia de cada vez. Leiam Victor LaValle!

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O Autor: Victor LaValle é um autor americano ganhador de diversos prêmios, inclusive um Shirley Jackson Award e um American Book Award. Foi criado no Queens por sua mãe, uma imigrante ugandense, que se mudou para os Estados Unidos aos vinte anos. Hoje dá aulas na Universidade de Columbia e vive em Washington Heights com sua esposa e filhos. Aprendeu o Alfabeto Supremo com dezoito anos de idade e o tem usado desde então.

ATENÇÃO, A CURIOSIDADE HISTÓRICA ABAIXO PODE REPRESENTAR SPOILER

Na crença popular europeia, changeling é uma criança humana trocada por outra, normalmente parte da prole de alguma criatura lendária. Os Irmãos Grimm exploraram isso em um conto, para citar apenas um exemplo.

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