Sinopse Morro Branco: Em seu vigésimo sexto aniversário, Dana e seu marido estão de mudança para um novo apartamento. Em meio a pilhas de livros e caixas abertas, ela começa a se sentir tonta e cai de joelhos, nauseada. Então, o mundo se despedaça. Dana repentinamente se encontra à beira de uma floresta, próxima a um rio. Uma criança está se afogando e ela corre para salvá-la. Mas, assim que arrasta o menino para fora da água, vê-se diante do cano de uma antiga espingarda. Em um piscar de olhos, ela está de volta a seu novo apartamento, completamente encharcada. É a experiência mais aterrorizante de sua vida… até acontecer de novo. E de novo. Quanto mais tempo passa no século XIX, numa Maryland pré-Guerra Civil – um lugar perigoso para uma mulher negra –, mais consciente Dana fica de que sua vida pode acabar antes mesmo de ter começado. (Resenha: Kindred – Laços de Sangue – Octavia Butler)

Opinião: A possibilidade de viajar no tempo sempre fascinou o homem, e a literatura se encarregou de imaginar as diversas possiblidades de nos transportarmos para o passado ou o futuro. Mas e se essa volta no tempo fosse algo fora do nosso controle? Uma ação sem momento certo para ocorrer e que colocasse nossa vida em risco seria tão fascinante assim? Um cenário como esse compõe a temática excepcional de Kindred, da consagrada Octavia E. Butler, considerada uma das damas da ficção científica norte-americana.

Kindred significa parentesco, família, ou como o subtítulo dado à obra em português, laços de sangue. Essa é a volta no tempo concedida, não se sabe como nem porque, para Dana, uma jovem negra dos EUA dos anos 1970. Ela é levada para o século XIX, onde terá contato com seus ancestrais. Detalhe: Dana retorna para um período escravocrata e terá de conviver com pessoas, negras e brancas, fundamentais para que ela possa nascer, décadas e décadas mais tarde.

Mais do que uma ficção científica sobre viagens no tempo, a história narrada em Kindred é um grande drama pessoal com interessantes contornos sociológicos. Em todos os momentos em que é chamada ao passado, Dana se vê às voltas com a figura de Rufus, personagem central para garantir o futuro dela. Tanto o futuro imediato, ali na fazenda escravocrata, quanto a segurança das gerações que vão resultar no nascimento dela. Mas Rufus é branco, é filho do dono da fazenda e, consequentemente, passa a ser o proprietário temporário de Dana pelo tempo em que ela permanece no passado. A relação dos dois é um dos pontos altos trabalhados na obra e que merece atenção especial na leitura. Afinal, a pessoa que te escraviza, com todas as torturas funestas que a escravidão traz consigo, é fundamental para que você nasça. Ao mesmo tempo, a convivência com essa pessoa, que a princípio poderia concentrar todo o seu ódio, desperta uma simpatia estranha, de difícil entendimento. Octavia foge de estereótipos ou vinganças históricas em sua narrativa e opta por desenvolver personagens com forças e fraquezas humanas. Kindred não é um acerto de contas, mas sim uma história de seres humanos com todas as características que nos compõe.

Em outro ponto, quando acidentalmente Dana acaba levando seu marido branco Kevin para o passado, a obra investiga a sociologia por trás da facilidade de adaptação que nós temos com o ambiente em que estamos inseridos. Euclydes da Cunha, escritor brasileiro, teorizou sobre como o “homem é fruto do meio” em sua obra monumental sobre a Guerra de Canudos, Os Sertões. A mesma lógica pode ser aplicada numa leitura sobre os comportamentos de Kevin diante do mundo escravocrata em que ele, mesmo sendo alguém de 1976, acaba por, em certos momentos, aceitar ou considerar normal demais as situações. A própria Dana não está imune à essa adaptação e em diversas passagens a vemos refletindo sobre esse “se conformar com o status quo”.

Dona de uma linguagem maravilhosamente envolvente, Octavia Butler nos conduz pela trajetória de idas e vindas de Dana e vai desnudando, sem julgamentos, o horror de uma época. A personagem negra acostumada com a liberdade do século XX sofre, literalmente, na pele a tortura pela qual seus ancestrais passaram ao mesmo tempo em que convive e conhece os dramas, as tristezas e também as motivações de cada um. A galeria de personagens escravos não é coadjuvante neste livro. Cada um tem uma história de vida bem desenvolvida e que ajuda fundamentalmente a compor o panorama da obra.  E através de pequenas atitudes, que podem até passar despercebidas pelo leitor, fica explícito que nem sempre precisamos de grandes realizações para fazer a diferença. Às vezes uma simples conversa é suficiente para mudar algo em favor do outro.

Tardiamente traduzido para o português, Kindred chega em um momento oportuno. As mudanças, nem sempre interessantes pelas quais passa nossa sociedade, merecem uma obra como essa para provocar reflexão. O horror de se colocar acima do outro, seja dominando, excluindo ou preconcebendo opinião, está sempre à espreita. A ficção de Octavia Butler é uma forma de mexer com nossos sentimentos, talvez nos tirar da inércia e abrir nossos olhos para algo que foi real e considerado normal, e que pode se travestir de outras justificativas para renascer, sob outras formas, mas sem perder sua essência bárbara. Há livros fundamentais, essenciais e de leitura obrigatória no mundo. Kindred é um deles.

Avaliação: 5 Estrelas

A Autora: Octavia Butler filha de um engraxate e uma empregada doméstica, a Grande Dama da Ficção Científica nasceu na Califórnia, em 1947. Aos 12 anos, assistiu ao filme “A Garota Diabólica de Marte”, que era tão ruim, mas tão ruim, que mudou completamente sua vida. Octavia decidiu que contaria histórias melhores do que aquela e assim começou sua jornada como escritora. A autora precisou lutar contra a pobreza, a dislexia e o racismo para receber um diploma universitário e foi a primeira mulher negra norte-americana a conquistar o sucesso em uma área da literatura dominada por homens: a ficção científica.

Ao longo de sua carreira, foi laureada com o MacArthur Fellowship, Hugo, Nebula e Locus Awards, além de ser indicada mais de 20 vezes à prêmios. Representava em seus livros heroínas negras e explorava temas como raça, empoderamento feminino, divisão de classe, sexualidade e escravidão. Em 2010, quatro anos após sua morte, foi inserida no Hall da Fama da Ficção Científica, em Seattle. Sua obra continua tão relevante, que ainda hoje é objeto de estudo e seu trabalho e vida ganharam uma magnifica exposição na The Huntington Library, na Califórnia.

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