Sinopse Intrínseca: Assim como Billy Pilgrim, o protagonista de Matadouro-Cinco, Vonnegut testemunhou como prisioneiro de guerra, em 1945, a morte de milhares de civis, a maior parte deles por queimaduras e asfixia, no bombardeio que destruiu a cidade alemã. Billy tinha sido capturado e destacado para fazer suplementos vitamínicos em um depósito de carnes subterrâneo, onde os prisioneiros se refugiaram do ataque dos Aliados. Salvo pelo trabalho, depois de ter visto toda sorte de mortes e crueldades arbitrárias e absurdas, Billy volta à vida de consumo norte-americana e relata sua pacata biografia, intercalando sua trajetória aparentemente comum com episódios fantásticos de viagens no tempo e no espaço. (Resenha: Matadouro-Cinco – Kurt Vonnegut)

Opinião: Entre os dias 13 e 15 de fevereiro de 1945, as forças aliadas realizaram um ataque surpresa em Dresden, chamada de capital barroca da Alemanha. 1.300 bombardeiros despejaram 3.900 toneladas de dispositivos incendiários e bombas destruindo 39 quilômetros quadrados do centro da cidade. Embora aja discordância para se chegar a um número preciso, estima-se que tenham morrido mais de 130 mil pessoas. Entre os sobreviventes estava um jovem norte-americano, prisioneiro de guerra dos nazistas, chamado Kurt Vonnegut Jr.

A experiência de Vonnegut o perseguiu pela vida e resultou em Matadouro-Cinco, uma verdadeira obra-prima contra as guerras, os armamentos e a indústria bélica. Contudo, este não é um livro normal. Deixando de lado a ladainha de relatos cronológicos recheados de detalhes e diálogos e sofrimentos, Kurt Vonnegut vestiu sua narrativa com tons de ficção científica e trouxe viagens no tempo e contatos com uma curiosa e evoluída raça de extraterrestres. O horror da Segunda Guerra Mundial é psicodélico, confuso, cheio de lacunas e com um humor negro que corrói. Matadouro-Cinco é um livro ácido e genial.

Com pouco mais de duzentas e cinquenta páginas, Matadouro-Cinco é resumido pelo próprio autor como um livro curto, confuso e desarmônico. Tudo isso “porque nada de inteligente pode ser dito sobre um massacre”. Partindo dessa ideia, viajamos no tempo e espaço com Billy Pilgrim, um alter-ego do autor, que é jogado no palco de horrores da guerra ainda jovem, uma criança em meio a muitas outras. Ali, ele acaba preso e como prisioneiro dos nazistas testemunha horrores e sobrevive ao ataque a Dresden. De volta para casa, surta, retorna ao normal, mas vive sempre atormentado por tudo o que viu. A jornada do protagonista de Vonnegut ganha ares de loucura porque ele é capaz de viajar no tempo. Ele conhece passado e futuro. Ah, e ainda tem uma experiência de abdução pelos habitantes do longínquo planeta Tralfamadore.

Uma leitura rápida estraga a experiência de Matadouro-Cinco. Porque a princípio nada ali faz sentido. Mas o livro é de uma genialidade absurda. O caos da guerra não faz sentido. A luta que se travava na Europa, por mais necessária que fosse ante a loucura de Hitler, tinha seus lados surreais. Tudo naquele cenário era brutal e quem estava no campo, à frente, jovens e inexperientes soldados ou velhos caquéticos e desdentados, não sabiam exatamente pelo que lutavam. Qual a justificativa para tanto horror?

Na época em que Matadouro-Cinco foi escrito e publicado os EUA viviam o pesadelo da Guerra do Vietnã, outro conflito absurdo. É possível que Vonnegut tenha bebido na revolta pessoal contra essa guerra para compor muito do discurso anti-armamentista de Matadouro-Cinco.

“E todos os dias meu governo me fornece uma contagem dos cadáveres criados pela ciência militar no Vietnã”.

Algumas das cenas mais curiosas de Matadouro-Cinco estão nos diálogos entre Billy e os tralfamadorianos. A visão de mundo e de vida dos extraterrestres é peculiar e traz reflexões bem interessantes. Ao mesmo tempo, a forma crua como tudo se desenrola na narrativa pode chocar. Geralmente estamos acostumados com visões atenuantes da guerra na literatura. Há sempre um herói a realizar atos de bravura. Tendência nossa querer romantizar até mesmo os massacres. Kurt Vonnegut fugiu de tudo isso e escancarou a realidade de uma rotina em que nada é bonito e que, em muitas vezes, o bizarro e o humor ganham espaço porque só assim é possível continuar.

Matadouro-Cinco é um livro para ser lido várias vezes. As experiências com ele são infindáveis e acredito que nossa percepção só tende a se ampliar quanto mais vezes mergulharmos nessa história. Se buscamos explicação para justificar qualquer ato de violência nos dias de hoje, aqui temos uma história que deixa claro que não há a menor chance de conseguirmos uma explicação lógica.

“E então, certa manhã, acordaram e descobriram que a porta estava destrancada. A Segunda Guerra Mundial tinha chegado ao fim na Europa”.

É assim mesmo.

Compre na Amazon

O Autor: Kurt Vonnegut nasceu em Indianápolis em 1922. Concluída a formação em Química, alistou-se no exército e combateu na Segunda Guerra Mundial. Feito prisioneiro, presenciou o bombardeamento de Dresden. Após a Guerra, formou-se em Antropologia.

Seu primeiro romance, Player Piano, foi publicado em 1951 e desde então ele escreveu muitos outros, entre eles: As sereias de Titã (1959), Mother Night (1961), Cama de Gato (1963), God Bless You Mr. Rosewater (1964), Welcome to the Monkey House (1968), Café-da-Manhã dos campeões (1973), etc. Morreu em 11 de abril de 2007, semanas após uma queda em sua casa em Manhattan que resultou em graves complicações cerebrais.

Compartilhar
Artigo anteriorResenha: Minha História – Michelle Obama
Próximo artigoIntrínseca lança novo livro de Mariana Enriquez
Jornalista e aprendiz de serial killer. Assumidamente um bookaholic, é fã do mestre Stephen King e da literatura de horror e terror. Entre os gêneros e autores preferidos estão ficção científica, suspense, romance histórico, John Grisham, Robin Cook, Bernard Cornwell, Isaac Asimov, Philip K. Dick, Saramago, Vargas Llosa, e etc. infinitas…

Deixe uma resposta