Sinopse Companhia das Letras: Em 1725, aportava no Brasil uma jovem de seis anos que fora escravizada e trazida à força da Costa de Uidá, Nigéria. Vendida na rua Direita, no Rio de Janeiro, foi batizada com o nome de Rosa e estuprada por seu comprador. Passados oito anos, é obrigada a deixar a capital fluminense e seguir para Minas Gerais, numa freguesia próxima à vila de Mariana, onde serviria à família Durão. Lá, se prostituiu por quinze anos até ter os primeiros acessos diabólicos, sofrendo uma série de exorcismos. Em meio a essas sessões, deu-se sua conversão a uma vida voltada ao estudo e à devoção à doutrina católica. Daí por diante, sua rotina de visões místicas e manifestações dos sete espíritos que a possuíam só aumentava. (Resenha: Rosa Egipcíaca – Luiz Mott)

Opinião: A história brasileira guarda personagens de trajetórias curiosas, picarescas, heróicas, marcadas por lutas e superações. Mulheres e homens marginalizados, que não povoam os livros didáticos, não são ensinados nas escolas e, muitas vezes, permanecem num limbo de esquecimento, seja porque as pesquisas ainda não os descobriram ou porque não conseguiram se sobressair e chamar a atenção o suficiente para suas sagas.

Graças ao trabalho minucioso de Luiz Mott, Rosa Egipcíaca e sua inacreditável história de vida ganharam tanto espaço que conseguiram a consagração popular se tornando enredo de escola de samba. Ex-escrava, ex-prostituta, beata, santa, ré e herege, Rosa foi reverenciada na festa negra, símbolo maior de nossa cultura e do nosso povo.

Pensar a vida de uma mulher negra no Brasil Colônia, submetida à monstruosidade da escravidão, aos abusos, à violência sexual e à condição de mercadoria, vendida de mão em mão e usada como prostituta, parece quase óbvio. Era a brutal realidade dos negros escravizados que às vezes chegavam aqui ainda crianças — como é o caso de Rosa, vinda para o Brasil com seis anos de idade.

Mas pensar essa mesma mulher como alguém que se diz espiritada, passa por sessões de exorcismo nas igrejas de Mariana e São João del-Rei, tem visões, é reverenciada e até adorada por padres e brancos, funda uma Casa de Recolhimento para ex-prostitutas no Rio de Janeiro, faz previsões, populariza devoções e afirma ser Esposa da Santíssima Trindade e fazer parte da corte celestial com conexões diretas com o próprio Cristo… soa como um romance fantástico.

E, no entanto, é realidade — documentada, investigada e apresentada com riqueza de detalhes por Luiz Mott em Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil.

Mais do que uma biografia, o livro também mergulha nos costumes, tensões sociais e tradições da Igreja Católica da época, situando o leitor na complexidade de um Brasil colonial pouco conhecido. A narrativa é saborosa, amparada em documentos, imagens e jargões da época (sempre acompanhados de suas devidas explicações), e pontuada por um humor sutil, que ajuda a digerir os absurdos e maravilhas da trajetória de Rosa.

É claro que tanta fama acabaria nas prisões da Santa Inquisição. Mas até chegarmos a esse desfecho, sua vida entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro é um desfile de feitos improváveis, principalmente se considerarmos o quanto ela — negra, ex-escrava e mulher — influenciou uma sociedade racista e patriarcal como a nossa.

Ao final, fica para nosso julgamento decidir se Rosa realmente teve seus contatos com Deus ou se tudo não passou de uma grande farsa tramada e influenciada pelos padres que a aconselhavam. Mas, convenhamos, com uma história de vida como essa, importa mesmo a diferença entre milagre e embuste?

Que Santa Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, “maior santa do céu”, abençoe sua leitura, porque esse é um daqueles livros imperdíveis de um Brasil que poucos conhecem — e que jamais pode ser esquecido.

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O Autor: Luiz Mott nasceu em São Paulo, em 1946. Frequentou o Seminário dos Dominicanos, em Juiz de Fora, formou-se em ciências sociais pela USP. Mestre em etnologia pela Sorbonne e doutor em antropologia pela Unicamp, é professor titular aposentado do departamento de antropologia da UFBA. Além de antropólogo, historiador e pesquisador, é ativista dos direitos civis LGBT, tendo fundado o Grupo Gay da Bahia. Escreveu, entre outros livros, Piauí colonial (1985), O lesbianismo no Brasil (1987), Escravidão, homossexualidade e demonologia (1988), O sexo proibido (1989), Bahia: Inquisição e sociedade (2010).

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