Sinopse Seguinte: Vinte anos depois de ter passado seu último verão no acampamento Andorinha, Iura decide voltar. Os tempos são outros: já não existe União Soviética, o muro de Berlim caiu, sua vida seguiu adiante. Então não é nenhuma surpresa que, ao chegar lá, ele só encontre ruínas. Ruínas repletas de memórias. Memórias daquele verão usando lenço vermelho no pescoço. O verão em que participou do clube de teatro ― e até acabou gostando. Em que inventou histórias de terror para divertir as crianças mais novas. Em que passeou de barco e deitou sob a sombra do salgueiro. O verão em que conheceu Volódia, um rapaz certinho, educado e muito inteligente. O verão em que viveu seu primeiro amor. (Resenha: Verão de Lenço Vermelho – Elena Malíssova & Katerina Silvánova)
Opinião: Como diz a sinopse do livro, “algumas pessoas marcam nossa vida para sempre e, mesmo décadas depois, ainda vale a pena lutar por elas”. Independentemente do que for. Seja o primeiro amor ou seja o amor verdadeiro, aquele que supera os raciocínios da razão, e só os que já o vivenciaram são capazes de entender o quanto ele é inesquecível.
É sob essa força inexplicável de lutar por quem amamos, que a bem construída trama de Verão de Lenço Vermelho vai ser desenrolar. Porque histórias de amor não são fáceis, não acontecem sob um mar de rosas e exigem uma determinação fora do comum para que obstáculos sejam superados. Ainda mais se estivermos falando da União Soviética dos anos 1980, mais precisamente 1986, curiosamente o ano em que esse resenhista nasceu. E antes de entrarmos na vida de Iura e Volódia, é interessante refletirmos um pouco sobre esse período crucial na história do mundo.
Verão de Lenço Vermelho se passa em um momento em que a União Soviética já dá seus respiros finais. Mas lá no interior onde a história acontece, o sentimento de amor ao Partido, aos deveres cívicos e às tradições comunistas ainda permanece intocado. E nesses anos 1980, dentro de uma ditadura que já tinha vivenciado uma fase sanguinária de mortes e perseguições sob Stálin, um homem gostar de outro homem é uma doença. Uma aberração. Nas palavras de uma personagem é algo “nojento”. E para aqueles que têm coragem o suficiente para buscar ajuda, é oferecido um tratamento para que encontrem a cura.
A sociedade comunista da URSS tornava um pária quem quer que não se enquadrasse nos padrões ou seguisse as normas ali estabelecidas. Ser gay poderia manchar seu nome, te levar para um hospício, e arrastar para a lama toda a sua família. Seria a perda de um lugar, de um emprego, de uma vida. Afinal, trata-se de uma aberração. E o governo informava, como retrata o livro, que a “pederastia era coisa de fascista”. Em certo trecho do livro é dito que “acabem com os homossexuais e acabaremos com o fascismo”.
Agora imaginem dois garotos entre 17 e 19 anos, nascidos e criados dentro dessa sociedade e que durante um acampamento de verão começam a perceber que sentem algo a mais um pelo outro. Não é apenas amizade. É um sentimento que vai além e que desperta vontades. Vontades erradas, proibidas e anormais.
Assim temos a história de Iura e Volódia no Acampamento Andorinha. Um verão em que ambos vão lidar com a descoberta, e o horror, de um sentimento que eles não podem nutrir, mas que é mais forte que ambos.
Verão de Lenço Vermelho conta de forma minuciosa e ricamente ambientada, tanto na ficção quanto na parte histórica da URSS, a história de Iura, 17anos, um garoto mais travesso, que vai para seu último ano no Acampamento Andorinha. É um verão como outro qualquer em que dezenas de atividades são desenvolvidas para distrair crianças e adolescentes. Há aprendizado cívico ali também, aulas de educação física, música, teatro, esportes. Tudo sob a rígida doutrina soviética de educação de jovens.
Só que um novo monitor, Volódia, de 19 anos, vai de forma estranha, atrair a atenção de Iura. Em um dia qualquer, no alongamento matinal, Iura se percebe observando as pernas, o short mais marcado, as coxas, do monitor. E isso mexe com ele. Daí em diante, Volódia passa a dominar os pensamentos de Iura, até mesmo gerando ciúmes porque, sendo um garoto muito bonito, ele acaba atraindo a atenção de todas as meninas do acampamento. A sequência vocês já imaginam: vai ter beijos, discussões, tensão, e ambos vão perceber que estão apaixonados um pelo outro.
Verão de Lenço Vermelho não é uma simples história romântica de amor homossexual. De forma detalhada, as autoras vão mostrar cada pensamento, perturbação, medo, devaneio, angústia, desejo dos personagens. Elas retratam precisamente o que um garoto criado numa sociedade em que gays são aberrações precisa passar para aceitar, ou não, os sentimentos que nascem e tomam conta de si. Tanto a descoberta do amor, quanto a resistência vinda em forma da inútil ideia de que “precisamos olhar para as garotas porque uma hora vamos gostar delas”.
Os dramas dos dois garotos para entender e aceitar o que sentem dão a tônica de uma trama cuidadosamente bem desenvolvida. Porque somos inseridos de forma crua nos pensamentos de Iura e nas argumentações de Volódia. Sem nenhuma romantização barata ou uso de clichês adocicados. Até porque a vida, em sua realidade, não é assim… E depois, passado o acampamento, há os desencontros, as promessas, as trocas de cartas e uma URSS que se desmantela, um Muro de Berlim que é derrubado e uma nova ordem mundial que sacode a vida daquelas pessoas.
Verão de Lenço Vermelho é a primeira história de amor entre dois garotos que leio que não utiliza de subterfúgios, clichês ou amenidades para retratar a trajetória dos personagens. Não há aqui a tradicional americanização de que tudo é lindinho, todos aplaudem e dá sempre certo. E não é só por se tratar de uma obra que se passa nos anos 1980. É por ter sido escrito por duas autoras que com certeza, pela vivência local, entendem bem que a vida real não é um filme de hollywood. E esse pé no chão que domina toda a narrativa é o que mais nos aproxima dos personagens e gera identificação entre nós e eles. Porque conhecemos bem os medos, as aflições e as inseguranças que eles passaram.
Dos aprendizados, Verão de Lenço Vermelho, mostra não só uma sociedade que se desmantelou, mas acende nossa atenção para como esse pensamento (que dominou direita e esquerda lá atrás) começa a ressurgir. A cura gay, a perda de direitos, as perseguições…
Das muitas lições que a obra deixa, fica, como constatamos no desfecho, que é preciso lutar pelo nosso Amor, custe o que custar, leve o tempo que for preciso. Porque a vida passa muito depressa para deixarmos a nossa felicidade ao lado de quem amamos se perder nos descaminhos do mundo.
Leiam!
PS: Quem me dera vivenciar, guardadas as devidas diferenças, a cena final desse livro no desfecho da minha história de Amor… G
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Conheça a história por trás da censura de “Verão de lenço vermelho”
As Autoras: Elena Malíssova nasceu numa cidadezinha soviética no fim dos anos 1980, onde viveu até se mudar para Moscou no fim dos anos 2000. Na juventude, publicou poemas em jornais locais, e mais tarde passou a escrever contos e romances LGBTQIAP+. Em 2022, depois de sofrer perseguição, Elena teve que deixar a Rússia, e em 2023 se estabeleceu na Alemanha.
Katerina Silvánova nasceu em Kharkiv, na Ucrânia, onde mora hoje. Depois da faculdade, trabalhou numa loja de sapatos e passava o tempo livre escrevendo. Aos vinte e quatro anos, conheceu Elena Malíssova, e juntas começaram a trabalhar no Verão de lenço vermelho.