Sinopse Antofágica: Um dos mais importantes romances brasileiros do século 19, O cortiço expõe a formação de uma elite burguesa por meio de personagens marcantes. Depois de vir para Brasil com o intuito de enriquecer e ascender socialmente, o português João Romão assume a propriedade de um cortiço no Rio de Janeiro, um ambiente inóspito com ar úmido, quente e solo lodoso. Além do conjunto de moradias, ele também é dono de uma pedreira e uma venda, e todo o seu plano enriquecimento passa pela exploração do trabalho e do consumo dos moradores do cortiço. Uma das obras mais conhecidas da literatura nacional, O cortiço se mostra também como uma grande crítica à formação da burguesia no Brasil. Com personagens fortes e muito bem construídos, Aluísio Azevedo mostra uma realidade de formação de riqueza com base em golpes e exploração do trabalho de mão de uma obra pobre, que se sujeitava ao trabalho em troca de uma moradia insalubre – retrato longe de ser superado no Brasil de hoje. (Resenha: O Cortiço – Aluísio Azevedo)

Opinião: Li O Cortiço pela primeira vez no Ensino Médio e, sendo bem sincero, foi um livro que passou batido. Eu apenas cumpri a obrigação curricular. Agora, com a nova e belíssima edição da Antofágica, mergulhei novamente no mundo de Aluísio Azevedo, autor que me marcou muito por outra obra, O Mulato, uma de minhas preferidas. E antes de mais nada, ficou muito claro pra mim o quanto eu não estava preparado lá atrás para absorver toda a profundidade desse livro. Como boa parte da literatura brasileira, há títulos que não podem ser pura e simplesmente “enfiados goela abaixo dos estudantes”. Não vamos gostar e não vamos entender.

O Cortiço, ícone do naturalismo brasileiro, é um livro que tende a incomodar o leitor do século XXI. Porque há preconceito e racismo explícitos ali. Mas trata-se de um retrato fiel do Rio de Janeiro, e do Brasil, daquele período e é com esses olhos que nós precisamos nos aventurar pela história. E não somente isso. Há uma clara noção de superioridade de raça quando os portugueses olham para os brasileiros. Mais ainda quando os de cá olham para os negros. Então, a obra ajuda em muito a entender boa parte dos problemas estruturais de nossa sociedade. Eles vêm lá de trás. Não nasceram hoje.

O Cortiço é a história de João Romão, homem ambicioso que desde o início já mostra que não tem muitos pudores para conseguir o que quer. Amigado da negra Bertoleza, ele vai aos poucos construindo seu patrimônio. Uma vendinha que se expande para pequenos casebres de aluguel, que se expandem para um cortiço, que termina no que podemos chamar de uma pequena vila. Algo que começa na simplicidade e na pobreza e que, ao fim, passa a selecionar de forma mais criteriosa seus habitantes. Esse João Romão também nutre inveja do seu vizinho, o Miranda. Rico, culto, de posses e com um título de visconde a caminho. Alguém, portanto, “superior”.

“… e Rita preferiu no europeu o macho de raça superior. O cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo às imposições mesológicas, enfarava a esposa, sua congênere, e queria a mulata, porque a mulata era o prazer, era a volúpia…”

Mas O Cortiço também é o hábitat de uma fauna de personagens incrível, cada qual representando bem um tipo social. Ah, essa frase que usei pode soar estranha, mas foi proposital. Porque uma das características do naturalismo e que Azevedo abusa ao longo de todo o romance é justamente essa comparação entre homens e animais. A obra reduz o comportamento dos seres humanos ao que se vê comumente na natureza. São passagens e mais passagens, algumas até chocantes, em que os personagens são comparados a bichos, “larvas no esterco”.

E O Cortiço é ele próprio um personagem, senão o grande protagonista. Ali fervilham os dramas da vida: amores, desilusões, brigas, ciúmes, lascívia, traições, sonhos… Pessoas que partilham o dia a dia umas das outras, que torcem pela menina que nunca se torna moça, que defendem a honra na navalha, que conspiram, que se entregam a insanidades, que comemoram o fim de semana em agitadas rodas de samba. Vidas simples de trabalhadores que já eram alijados daquela capital que começava a tentar se europeizar. Era um Rio de Janeiro que colocava os moradores daquele cortiço já à margem.

As relações sociais estabelecidas na obra obedecem religiosamente à divisão entre a elite, a classe dominante, e os pobres, malandros e perigosos. Os próprios moradores do cortiço têm essa visão seja na mocinha que se casa e muda para um lugar melhor; seja no português que ao se misturar com a mulata se torna insolente e preguiçoso; e também no próprio João Romão que à medida que ascende socialmente, vai mudando hábitos e desprezando os “inferiores”, sendo sua companheira, Bertoleza, o maior exemplo.

“Já lá se não admitia assim qualquer pé-rapado: para entrar era preciso carta de fiança e uma recomendação especial. Os preços dos cômodos subiam, e muitos dos antigos hóspedes iam, por economia, desertando (…) O cortiço aristocratizava-se”.

O conjunto de histórias que permeia esse livro é riquíssimo. São dezenas de personagens partilhando conosco suas idas e vindas. É a verdadeira luta dos trabalhadores humildes e marginalizados para conquistar um pouquinho que seja da felicidade. E ela vem com muito custo e as perdas, entre brigas, batidas policiais e injustiças são muitas. Por fim, chegamos a um desfecho trágico, fruto do golpe final de João Romão, e que transborda uma ironia que ao mesmo tempo que pode causar revolta nos leitores, arranca um leve sorriso ao percebermos que de fato, as coisas são assim mesmo nesse Brasilzão.

Há falas preconceituosas, racistas, elitistas e um sem-número de episódios que fariam o tribunal da internet “cancelar” Aluísio Azevedo num tweet. Mas O Cortiço nada mais é do que o retrato de um período com todas as suas contradições e início de transformações. É fundamental para entendermos o nosso Brasil e, citando Luiz Antonio Simas em seu texto complementar da edição, “a criminalização da pobreza, o racismo, a dicotomia entre civilização e barbárie, continuam presentes em relação às favelas e comunidades periféricas”. Vale a leitura e ao final, nos perguntarmos: o quanto desse Cortiço ainda segue pulsando, vivo, ao nosso redor?

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O Autor: Aluísio Azevedo é um dos maiores escritores do Brasil. Nasceu em São Luís (MA) e se mudou para o Rio de Janeiro para fazer seus estudos em Belas-Artes. Na então capital do império, trabalhou em diversos jornais e periódicos, como jornalista e caricaturista, até retornar à sua terra natal para cuidar do sustento da família. E foi no Maranhão que produziu a maior parte de sua obra, tornando-se o principal nome do Naturalismo na literatura brasileira. Apontado pela historiografia como o primeiro escritor profissional no país, conseguiu viver de sua escrita até abandonar a carreira literária para se tornar diplomata. Abolicionista ativo na sociedade, com traços desta convicção em seus textos, faleceu em Buenos Aires onde exercia sua função diplomática.

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Jornalista e aprendiz de serial killer. Assumidamente um bookaholic, é fã do mestre Stephen King e da literatura de horror e terror. Entre os gêneros e autores preferidos estão ficção científica, suspense, romance histórico, John Grisham, Robin Cook, Bernard Cornwell, Isaac Asimov, Philip K. Dick, Saramago, Vargas Llosa, e etc. infinitas…

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