Resenha: Nós Somos a Cidade – N.K. Jemisin
Sinopse Suma: Toda cidade tem alma. Mas toda cidade também tem um lado obscuro. Um mal antigo espreitando sob a terra, esperando pelo momento certo para atacar. E quando Nova York desperta, corporificada na figura de um franzino garoto de rua, o ataque que se segue é brutal. O jovem, avatar da metrópole, fica em um coma mágico, e a cidade corre perigo com o mal que infesta ruas e pessoas, ameaçando destruí-la. É então que outros cinco avatares são chamados à luta. Em Manhattan, um jovem universitário sente o pulsar da metrópole e compreende seu poder. No Bronx, a diretora lenape de uma galeria de arte descobre estranhos grafites que a atraem de maneira irresistível. No Brooklyn, uma antiga MC que entrou para a carreira política consegue ouvir a música da cidade. No Queens, uma imigrante indiana com um visto de estudante não entende como pode se tornar parte de um lugar que mal a reconhece como cidadã. E em Staten Island, a filha oprimida de um policial violento sente o resto da cidade chamando por ela. Enquanto isso, o avatar de Nova York dorme, esperando que seus distritos consigam se unir e expulsar de uma vez por todas o invasor monstruoso à caça deles. (Resenha: Nós Somos a Cidade – N.K. Jemisin)
Opinião: Não há como fugir do clichê da contracapa que diz que “toda cidade tem alma”. Porque nós sabemos que isso é muito verdade. Independente do tamanho, da importância econômica, turística ou cultural absolutamente todas as cidades têm a sua essência, o seu jeito de encantar, de se desenvolver, de atrair os visitantes ou de resistir. E muito da alma das cidades vêm do seu povo e das formas como ele vai moldando a sociedade geração após geração. Cada um de nós sente a alma de uma cidade quando a visita e mais ainda, sentimos a alma da nossa, mesmo que não tenhamos nascido nela, mas a escolhido para construir nossa vida.
Mas e se essa alma fosse personificada? Se existisse alguém que reunisse em si toda a essência e as características que compõe e moldam uma cidade, como essa pessoa seria? Logicamente essa pessoa responderia pela vitalidade da cidade, protegendo-a e garantindo a resistência. Ou ela também poderia receber apoio de suas partes, os distritos, ou comunidades, ou regiões, ou o nome que for mais conveniente para o seu entendimento. Juntos seriam uma força a resistir. A que? Bom, aos perigos que rondam a sociedade e podem corrompê-la e provocar rupturas impossíveis de serem consertadas. Cidades podem desaparecer do mapa mediante sérias rupturas. Afinal, cidades também morrem…
Nova York está passando por esse processo de ter a sua personificação em formação. O avatar que representa a cidade está nascendo. E ele recebe a ajuda de São Paulo, uma já experiente cidade do continente norte-americano para completar esse processo. Mas eis que algo dá errado. E para ajudar esse avatar primário, cinco outros acabam sendo despertados. Cada um deles representa um distrito: Manhattan, Bronx, Brooklyn, Queens e Staten Island.
São cinco pessoas comuns que sentem algo diferente do nada. Eles percebem a conexão com a Nova York que amam e carregam dentro de si todas as melhores características de seus distritos. Há, dentro deles, história, lutas, sangue, sobrevivência, tolerância, multiculturalismo, diversidade, xenofobia e tudo o mais que cada parte de Nova York representa. E eles precisam se juntar porque somente juntos eles podem despertar o avatar primário. Essa alma responsável por cuidar da cidade que eles amam.
Os obstáculos? Lógico que eles existem. Porque há forças que não desejam a vivacidade de uma cidade. E essas forças atuam para impedir o nascimento do avatar ou então encontrá-lo a tempo de acabar com ele. Ao longo da história, cidades sucumbiram ao poder maléfico e viraram lenda como Atlântida ou Pompeia; outras passaram por traumas profundos em seu processo de formação como Porto Príncipe ou Nova Orleans. No caso de Nova York, o mal se organizou de forma a tomar o controle e trazer uma nova cidade para ocupar seu lugar: R’lyeh (aos que não conhecem a obra de Lovecraft, essa é a cidade que aprisiona Cthulhu). É contra essa força que os cinco distritos precisam lutar.
Essa é a genialidade da metáfora alegórica criada por N.K. Jemisin em Nós Somos a Cidade, uma fantasia originalíssima e com tantas referências e pés fincados na realidade que torna a leitura algo fascinante. Porque sim, cidades têm alma e nós todos sabemos disso. E em cada rua, via, avenida, labirintos, morros e favelas existe uma enormidade de pessoas com seus estilos, jeitos, características, sua música, sua arte, sua atração financeira ou sua vontade de ficar quieto no seu canto. E foi esse caldeirão humano que Jemisin reuniu para escrever uma grande carta de amor e resistência à Nova York. Mas que serve para qualquer cidade. Basta que a gente saiba exatamente como transportar muito do que está no livro para as nossas realidades de cidade.
Muito além da escrita envolvente e da pegada de dar para a cidade seus avatares que carregam as características mais marcantes de cada distrito nova-iorquino, Nós Somos a Cidade exala em suas páginas parágrafos descritivos desses distritos que soam como poesia. A autora mergulhou na essência histórica de cada lugar e colocou isso em palavras de amor, de resistência, de lutas, de suores, mas principalmente, mostrou que é isso que faz de Nova York a metrópole pulsante que ela é. Um lugar que normalmente seus moradores costumam odiar “da boca pra fora”, mas que nunca abandonam porque ali é seu território e que ninguém ouse tocar.
Nós Somos a Cidade reúne na medida certa as melhores características de uma fantasia com ares de suspense. Temos a velha e boa luta do bem contra o mal e a corrida contra o tempo para salvar algo, a cidade, antes que tudo dê muito errado. Personagens cativantes, ao seu estilo, e inúmeras referências aos males que atingem nossa sociedade como a intolerância, a xenofobia, o preconceito, o machismo, a superioridade da raça. Há muita influência na construção da trama do período tenebroso pelo qual os Estados Unidos passaram no governo Donald Trump. É perceptível que o clima vivido no país tenha despertado na autora esse grito de amor e de resistência – novamente essa palavra aparece nessa resenha, porque é a melhor que eu encontro para definir o conjunto tanto do que viveu a sociedade norte-americana quanto inúmeras outras sociedades no mundo têm vivido.
A leitura é deliciosa e bem difícil de largar e há inúmeras referências a muita coisa. Vou destacar especificamente a obra de Lovecraft que se faz bem presente, protagonizando o mal, inclusive. É importante sempre ressaltar que o autor, um dos gênios do terror, principalmente do chamado horror cósmico, era extremamente racista e muitos textos seus refletem essa visão. E aqui não estou fazendo críticas ou defesas tampouco pregando políticas de cancelamento. Apenas constando dois fatos: a genialidade de um escritor, um dos meus preferidos, e também seu repugnante racismo.
Pra finalizar esse texto que já ultrapassou meu tamanho padrão para resenhas, Nós Somos a Cidade é, de longe, um dos melhores e mais criativos livros que já li. O conjunto dele é original e traz visões críticas sem cair na panfletagem barata. Mais do que isso, é uma poesia de amor a uma cidade. Talvez seja a maior homenagem que N.K. Jemisin jamais pensou que poderia prestar à sua Nova York. Nas suas palavras “já odiei esta cidade. Já amei esta cidade. Vou lutar por esta cidade até não fazer mais parte dela.” Uma declaração de amor e uma lição a todos nós que amamos nossas cidades.
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A Autora: N.K. Jemisin é a primeira escritora a vencer o prêmio Hugo de Melhor Romance por três anos consecutivos. Sua obra também ganhou os prêmios Nebula, Locus e Goodreads. Ela escreve para o New York Times Book Review e já deu aulas no workshop de escrita da Clarion West. Em seu tempo livre, ela gosta de jogar videogames e cuidar do jardim.