Sinopse José Olympio: Dôra, Doralina narra a história de Maria das Dores, viúva recente de um casamento de conveniência, que sai da sombra da mãe e de uma vida de submissão para viver em Fortaleza. Na capital do Ceará, Dôra torna-se atriz e passa a viajar pelo Brasil como integrante da trupe de uma Cia de teatro mambembe. Em determinada viagem conhece o Comandante, homem que desperta seu amor mais profundo e com quem se muda para Rio de Janeiro, abandonando o teatro. Após sua experiência com o amor que poucos têm coragem de viver, Dôra retorna para sua cidade natal, fechando o ciclo de vivências que a transformaram em outra mulher. (Resenha: Dôra, Doralina – Rachel de Queiroz)
Opinião: Rachel de Queiroz é muito maior do que o pouco que se fala dela atualmente. É dessas autoras brasileiras que mereciam ser mais reverenciadas e lidas e relidas sem fim. Sua prosa é envolvente, seus personagens são fortes e cativantes e ela tem aquele DNA brasileira em sua escrita. A força do nordeste e de sua gente é viva nas páginas de seus livros. É possível sentir e vivenciar a cada página tudo o que descrito, ocorrido, acontecido, pensado, enfrentado. E suas personagens são mulheres de fibra, de garra, destemidas. São mulheres bem à frente de seu tempo e dispostas a provar que podem sempre ir além. Apesar da época em que as histórias se passam, nenhuma delas está ali para figurar como coadjuvante de seus maridos, pais ou da sociedade. Elas lideram. Elas protagonizam.
“Aquilo que te mata hoje amanhã estará esquecido, e eu não sei se isso está certo ou está errado, porque acho que o certo era lembrar. Então o bom, o feliz se pagar como o ruim, me parece injusto, porque o bom sempre acontece menos e o mau dez vezes mais.”
Dôra, Doralina é a saga de uma mulher em três tempos. São três vidas vividas e narradas com a simplicidade e a inocência de uma menina. Alguém que se criou numa fazenda distante, sob o jugo forte de uma mãe dura, de nome Senhora, implacável, com uma criação dada em uma época em que não se demonstravam tantos sentimentos para com os filhos e respeito era algo que não se discutia. Se tinha. É nesse ambiente, uma fazenda comandada por uma viúva forte, que Maria das Dores, nossa Dôra, vai se criar. Longe dos festejos da vila mais próxima. Sem amigas, sem namoricos, sem conhecer nada do mundo além do horizonte que a vista alcançava.
O segundo ato, traz Dôra viúva moça, já emancipada à força das garras da mãe e vivendo em Fortaleza. Descobrindo um pouco mais do mundo na capital e se envolvendo com uma companhia de teatro ambulante. Ali ela vai se fazer atriz e percorrer capitais do Norte e do Nordeste em apresentações as mais diversas. Vai desbravar novas facetas do Brasil e descendo pelo Sudeste vai conhecer o Comandante, homem responsável por navios que percorrem o São Francisco, por quem vai se apaixonar e decidir construir uma vida juntos.
Assim, o terceiro ato é a Dôra casada com o Comandante vivendo uma vida de sonho no Rio de Janeiro. Um parceiro que se dedica ao contrabando de mercadorias, mas que é perdidamente apaixonado por ela. Um homem também muito ciumento e que quando bebe pode ficar violento. Mas o amor que Dôra e o Comandante vão viver é, no fundo, muito puro. É literalmente a construção de uma vida a dois. Feliz. E por fim, Dôra retorna para assumir o comando da fazenda após a morte de sua mãe. Fecha-se a cortina e o processo de amadurecimento e formação dessa mulher.
Dôra, Doralina é uma obra de formação. De uma menina que casa e conhece a viuvez muito cedo. Que enfrenta a mãe e se lança no mundo, como atriz mambembe. Que conhece o amor verdadeiro e a ele se entrega. E que, por fim, acaba retornando ao ponto de partida como uma nova mulher, mas também com aquela marca deixada pela mãe. Doce, gentil, sonhadora, amorosa, mas dura em seu luto e na forma como encara o futuro que tem pela frente.
“Doer, dói sempre. Só não dói depois de morto, porque a vida toda é uma dor.”
A narrativa da vida de Dôra, feita por ela mesma, numa primeira pessoa deliciosa de acompanhar, vai mostrando através das suas palavras e percepções do mundo, essa formação da menina, mulher, viúva. Alguém forte o bastante para se lançar no mundo desconhecido sem medo. Sem medo da vida e sem medo de se entregar ao amor. Mas em nenhum momento ela fraqueja. Porque são muitas as dificuldades e os desafios que vão se colocando em seu caminho. Pensem que estamos numa narração que percorre boa parte do Brasil dos anos 30, 40 e 50. Eram outros costumes e jeitos. Ainda mais nos interiores. Mas ela sempre segue em frente. Não há recuos nesse livro. Porque mesmo a volta para a fazenda representa mais um passo ao futuro do que uma derrota.
O bacana das obras de Rachel de Queiroz, uma das minhas autoras favoritas, é que rapidamente nos tornamos íntimos dos personagens e do cenário. É como se fossem velhos conhecidos dos quais gostamos muito da companhia. Então é uma delícia mergulhar na leitura porque é envolvente demais. E em Dôra, Doralina, não faltam tipos brasileiríssimos para nos encantar. A trupe de teatro formada por Seu Bradini, e seu jeitão de “adaptar” peças estrangeiras, Estrela, Dona Pepa e os demais coadjuvantes é cinematográfico de visualizarmos. São brasileiros reais pra valer porque a vivência deles salta das páginas para as ruas com facilidade. O Comandante, marido de Dôra, e seus jeitinhos de sobreviver ganhando a vida meio na ilegalidade é também muito da alma brasileira. E as descrições dos lugares percorridos com seus tipos sociais, suas referências geográficas e seus dramas são palpáveis demais (abro uma brecha para falar do quanto minha Juiz de Fora aparece nesta obra).
Para não alongar mais, quero deixar a recomendação: leiam Rachel de Queiroz! Se permitam conhecer um pouco dessa autora e de sua obra. Há muitos livros para vocês desbravarem essa mulher que criou tantas mulheres fortes, e Dôra, Doralina é uma dessas opções. Se embrenhem nas fazendas, na mágica do sertão nordestino com sua gente de força, sua crença, e seus personagens inesquecíveis. E viva Rachel!
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