Resenha: O Gigante Enterrado – Kazuo Ishiguro
Sinopse Companhia das Letras: Uma terra marcada por guerras recentes e amaldiçoada por uma misteriosa névoa do esquecimento. Uma população desnorteada diante de ameaças múltiplas. Um casal que parte numa jornada em busca do filho e no caminho terá seu amor posto à prova – será nosso sentimento forte o bastante quando já não há reminiscências da história que nos une? Épico arturiano, o primeiro romance de Kazuo Ishiguro em uma década envereda pela fantasia e se aproxima do universo de George R. R. Martin e Tolkien, comprovando a capacidade do autor de se reinventar a cada obra. Entre a aventura fantástica e o lirismo, O Gigante Enterrado fala de alguns dos temas mais caros à humanidade: o amor, a guerra e a memória. (Resenha: O Gigante Enterrado – Kazuo Ishiguro)
Opinião: Ler uma obra de um autor vencedor do prêmio Nobel de literatura, inevitavelmente, cria expectativas, afinal trata-se de um dos principais prêmios literários de que se tem notícia. Kazuo Ishiguro, japonês e autor de grandes sucessos da literatura que já venderam milhões de cópias pelo mundo, foi o nome que levou o título para casa no ano de 2017, surpreendendo a todos, e que, dois anos antes, lançava uma de suas obras mais curiosas e arriscadas, O Gigante Enterrado, publicado no Brasil pela editora Companhia das Letras, com tradução de Sonia Moreira. Foi seu primeiro trabalho depois de 10 anos longe do mercado literário e uma incursão pela fantasia – coisa que sua esposa, inclusive, desencorajou algumas vezes. Porém, diferentemente do que o título sugere em um primeiro momento, essa história não é sobre lutas entre o bem e o mal, com batalhas épicas e muitos dragões e gigantes – o foco da narrativa é outro. Portanto, caso você seja um leitor que busca por novas fantasias clássicas, que remetam aos mundos de Tolkien e Martin, com aquela ação palpável e empolgante, esse livro não é para você.
Mas, se você gosta de histórias contadas pouco a pouco, em uma narrativa sublime com aquela ambientação envolta por névoa e mistérios, sendo o mundo fantástico apenas um cenário de fundo, talvez você curta esse livro. O fato é que a obra de Ishiguro não foi pensada como uma fantasia escrachada, mas sim como uma jornada de dois personagens que, por si só, se afastam do clichê que costumamos encontrar nesses tipos de livros: aqui, um casal de idosos rouba, de forma brilhante, o lugar do consagrado herói forte e viril que sempre existe em narrativas fantásticas. E quando falo em jornada, é como se, literalmente, houvesse uma câmera acompanhando cada passo e cada pensamento dessas duas pessoas. E, adivinhem? Para a minha surpresa, não é uma leitura monótona e sem emoção. Eu me flagrei investido nessa trama desde a primeira página, impressionado com a capacidade e preocupação do autor em construir seu universo de maneira a torná-lo o mais crível possível. É um livro bem detalhado, porém de ritmo gostoso de se acompanhar, mesmo com os capítulos sendo um pouco mais extensos do que estamos acostumados. Um livro para se degustar, e não devorar!
Uma névoa gelada pairava sobre rios e pântanos, muito útil aos ogros que ainda eram nativos daquela terra. […] As pessoas da época os teriam encarados como perigos cotidianos, e naquele tempo havia uma infinidade de outras coisas com que se preocupar: como obter alimentos do solo duro; como não deixar que a lenha acabasse; […]
– Página 9
Por meio do trecho, há de se ter, portanto, uma ideia da abordagem d’O Gigante Enterrado. Personagens sobrenaturais e mitológicos fazem sua aparição, como guerreiros, dragões, ogros (obviamente) e até a figura do Barqueiro, um ser responsável por levar as almas dos mortos ao seu destino final, porém, Kazuo Ishiguro usa a atmosfera de fantasia para conversar um pouco sobre as guerras, sobre as dificuldades rotineiras, sobre o amor, sobre família, sobre pertencimento, sobre envelhecer e sobre memórias e lembranças. Nesse mundo, as pessoas acabam se esquecendo de coisas que aconteceram há bastante tempo, bem como de situações que podem ter acabado de acontecer, então o leitor acaba sendo também vítima dessa falta de informações, prendendo-o à narrativa. Quanto aos personagens, Axl e Beatrice, os dois protagonistas dessa histórias, são muito bem desenhados e carismáticos e que dividem as cenas com uma interação bem interessante, fundamental para que as quase 400 páginas não se tornassem outra coisa senão prazerosas. Honestamente? Não esperava gostar tanto desse livro.
De forma geral, é uma leitura que mergulha na superfície e aprofunda as discussões dos assuntos que traz junto com a história, ao mesmo tempo em que entretém o leitor. Tive um vislumbre do que poderia ser o final logo no capítulo 2, e acredito que tenha sido a intenção do autor, mas de forma alguma isso atrapalhou a minha experiência. O Gigante Enterrado foi um livro que me surpreendeu e que, certamente, não se esgota nesse primeiro contato. Fica claro o porquê de Kazuo Ishiguro ter levado o prêmio Nobel de literatura, já que se mostrou um autor que domina habilmente as ferramentas da escrita e que, com certeza, tem muito a oferecer com suas narrativas. Para finalizar, reforço os dizeres do pessoal da Publishers Weekly: fácil de ler, difícil de esquecer.
– como a senhora e o seu marido vão provar o seu amor um pelo outro, se não conseguem se lembrar do passado que compartilharam?
– Página 59
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O autor: Kazuo Ishiguro nasceu em Nagasaki, no Japão, em 1954, e mudou-se para a Inglaterra aos cinco anos. Ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 2017. É autor de sete livros, entre eles Os vestígios do dia, vencedor do Booker Prize, e Não me abandone jamais, ambos com aclamadas adaptações para o cinema.