Sinopse Companhia das Letras: Lula Ann Bridewell, ou simplesmente Bride, como prefere ser chamada, é uma jovem cuja pele escura foi motivo de desgosto dos pais desde seu nascimento. “Não levou mais de uma hora depois que tiraram a criança do meio das minhas pernas pra perceberem que tinha alguma coisa errada. Muito errada. Ela era tão preta que me assustou”, diz Mel, a mãe de Bride, de pele mais clara. Abandonada pelo marido, que a culpa pela cor da filha, Mel é incapaz de lhe devotar amor, e sua rudeza com Bride denota a um só tempo a decepção que sente e a preocupação com seu futuro. “A cor dela é uma cruz que ela vai carregar pra sempre.” Criada sem amor por uma mãe que se recusava a reconhecer a própria existência da filha, Bride tenta reivindicar o amor materno contando uma mentira que culmina na prisão de uma mulher inocente. Anos mais tarde, depois de aprender sozinha a se sentir confortável com a própria aparência e de se tornar uma funcionária bem-sucedida da indústria de cosméticos, Bride procura reparar os danos causados pela sua invenção. (Resenha: Deus ajude essa criança – Toni Morrison)
Opinião: Sabem quando vocês leem um livro esperando por uma história e, na verdade, se deparam com uma outra um pouco diferente do que imaginaram? Para mim, por exemplo, “Deus ajude essa criança” seria essencialmente sobre racismo. Seria uma daquelas tramas em que essa triste realidade bateria com os dois pés na minha porta e me derrubaria, sem pedir licença. Por que eu pensei isso? O trecho na contracapa. Foi o que me chamou a atenção na época, nem me preocupei com sinopse. Mas, não. Esperem. “Deus ajude essa criança”, o décimo primeiro livro da autora vencedora do prêmio Nobel, Toni Morrison, não é só sobre racismo, pelo menos não o coloca no centro do palco, sob o holofote principal. E tudo bem, porque, de qualquer forma, eu encontrei uma história que contempla temas tão importantes quanto. Essa obra, publicada originalmente em 2015 nos Estados Unidos, nos apresenta a história de uma mulher negra que, devido a sua difícil infância, marcada por rigorosos cuidados de sua mãe de modo a tentar protegê-la do mundo cruel e desigual, cresce carregando nas costas traumas e pesos, embora seja, na fase adulta, uma profissional muito bem-sucedida. A questão é: até que ponto o passado pode nos influenciar?
Quando devemos confrontar nossas tragédias pessoais? Então, reafirmo, “Deus ajude essa criança” não é um romance só sobre racismo. É um romance sobre uma mulher se permitindo seguir em frente, mesmo que, para isso, tenha que regredir aos anos em que era somente uma criança, libertando-se de uma imagem que não era verdadeira. É um romance sobre um rapaz que possui dificuldades em superar suas perdas e que, por isso, vive preso ao que já aconteceu. É um romance sobre uma mãe que, embora não munida das melhores escolhas, faz o possível para tentar proteger sua filha de um mundo hostil, mesmo que às vezes ela mesma reproduza o que tanto teme. Enfim, temos aqui um romance poderoso sobre seres humanos e seus erros, sobre seres humanos e suas tentativas de reconstrução, sobre seres humanos e superação. É uma história que dá voz a diversos personagens, dentre eles a mãe, cuja narração foi uma das minhas favoritas (é como se ela tivesse conversando diretamente com o leitor), e que constrói uma história muito rica e bonita. Repito, um romance poderoso.
Eu não fui uma mãe ruim, você precisa saber disso, mas posso ter feito alguma coisa dolorosa pra minha única filha porque tinha que proteger a menina. Tinha. Tudo por causa de privilégios da cor de pele. No começo, eu não conseguia enxergar dentro de todo aquele negrume e saber quem ela era e simplesmente dar amor. Mas eu amo. Amo mesmo. Acho que ela entende isso agora. Eu acho.
– Página 46
A autora aborda essas diversas questões a partir do fim abrupto de um romance, que inquietará nossa protagonista, Bride, e a impulsionará em uma jornada pelo seu interior. É tão bonito ver como aquela criança, cuja cor era motivo de desgosto até da própria família, se tornou uma mulher que se orgulha de quem é e do que se tornou. Doloroso também, mas muito inspirador. E tudo isso graças ao trabalho de Toni Morrison, que não perde tempo com descrições desnecessárias. Suas palavras são diretas e afiadas, nos atingindo cruas e com muito significado, tanto é que terminei a leitura com os olhos marejados. Não, “Deus ajude essa criança” não tem a intenção de ser um livro triste, mas esse sentimento nos invade a partir do momento em que somos capazes de ler as entrelinhas, quando percebemos os pequenos detalhes e tudo o mais. Além de poderoso, diria que é um livro necessário.
Então a loucura é isso. Não um comportamento de pateta, mas ver uma súbita mudança no mundo que você conhecia.
– Página 54
“Deus ajude essa criança” é um baita livro. De leitura rápida, com suas 160 e poucas páginas, aborda as influências do passado e da infância em nossa vida. Recomendo demais, demais, demais! Obs: o livro contém cenas fortes de violência e estupro.
A autora: Nasceu em 1931, em Ohio, nos Estados Unidos. Formada em letras pela Howard University, estreou como romancista em 1970, com O olho mais azul. Em 1975, foi indicada para o National Book Award com Sula (1973), e dois anos depois venceu o National Book Critics Circle com Song of Solomon (1975). Amada (1987) lhe valeu o prêmio Pulitzer. Foi a primeira escritora negra a receber o prêmio Nobel de literatura, em 1993. Aposentou-se em 2006 como professora de humanidades na Universidade de Princeton.