Sinopse Record: Este livro-reportagem é daqueles raros que esgota – destrincha até não sobrar dúvida – o assunto a que se dedica: a histórica e macabra sociedade entre jogo do bicho e ditadura militar. Seus personagens principais, Anísio, o “papai” da Beija-Flor, Castor de Andrade, o benfeitor da Mocidade Independente, e Capitão Guimarães, militar e torturador dos calabouços da ditadura, cresceram e apareceram (não sem muito sangue) no ambiente terrivelmente favorável dessa parceria. Neste “Os porões da contravenção”, Aloy Jupiara e Chico Otavio recriam a fauna de terror em que os bicheiros foram buscar os braços que lhes garantiriam segurança, território e organização. E vão muito além de escancarar – o que por si só já representaria um marco jornalístico – as manobras por meio das quais o regime não apenas protegeu, mas permitiu e mesmo estimulou, o desenvolvimento sustentável do crime organizado no Rio de Janeiro e, logo, no Brasil. (Os Porões da Contravenção – Aloy Jupiara e Chico Otavio)
Opinião: Das tantas contradições que compõe esse Brasil de surrealismos, talvez uma das mais interessantes seja a relação entre sociedade e poder público com a contravenção. Há uma mescla de apoio quase explícito por boa parte do primeiro setor com uma tolerância velada por parte do segundo. O melhor exemplo, todos sabem, encontra-se escancarado ano após ano nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. Exemplo que vem de décadas atrás, foi sobrevivendo e ainda hoje se mantém firme e inabalável.
Na tela da TV, no meio de todo aquele povo a desfilar pela Sapucaí, encontram-se figuras quase lendárias. Benfeitores das agremiações, os bicheiros (também chamados de “papais”) sustentam há décadas seu poder em regiões do Rio de Janeiro e até em municípios inteiros, como é o caso de Nilópolis, na Baixada Fluminense. Ofuscando a ilegalidade dos atos criminosos que praticam, suas ações em prol das escolas de samba mudaram os rumos da festa, profissionalizaram os desfiles e os transformaram em mecenas de uma das manifestações culturais que mais carregam o DNA brasileiro.
Mas de onde surgiu e como se construiu todo esse poder capaz de fazer com que até prefeitos se curvem ante sua passagem pela avenida? Foi em busca de respostas para perguntas como essa que os jornalistas Aloy Jupiara e Chico Otávio mergulharam nos arquivos da ditadura militar. Nos anos sombrios da história brasileira começou a se forjar a estrutura daquilo que, para os autores, é a maior organização criminosa do país.
Centrado na trajetória de Castor de Andrade, Anísio e Capitão Guimarães, Os Porões da Contravenção apresenta um dos capítulos menos explorados por nossa história: o jogo do bicho. Com uma farta documentação, depoimentos que vão de torturadores confessos até sambistas, e uma linguagem no tom objetivo do jornalismo, a obra desvenda os horrores do período de repressão e como os bicheiros se aproveitaram do período para fincar as bases de sua ampla rede de domínio. Desfilam pelas páginas presidentes da República como Médici ou Figueiredo, torturadores como Paulo Malhães, políticos como Leonel Brizola e Moreira Franco, e episódios emblemáticos como o atentado do Riocentro.
A pesquisa dos jornalistas é minuciosa e o conjunto geral da obra é chocante. Enfileiram-se a frieza das atitudes, o cálculo exato dos passos a serem dados, o escárnio no modo de justificar acusações, a impunidade, o crime, a punição aos que desobedecem, as relações espúrias com o poder político e policial, o aplauso de uma comunidade campeã do carnaval, a foto na coluna social, o poder, o poder, o poder…. Nada muito diferente das diversas outras contradições que, escândalo após escândalo, crime após crime, delação após delação, ainda fazem de nós, um país de absurdos.
Avaliação: 5 Estrelas
Os Autores: Aloy Jupiara e Chico Otávio são jornalistas de O Globo.