Opinião: Não é qualquer livro que expõe os conflitos, dramas e pensamentos íntimos familiares de forma tão crua e sem maquiagens como a jornalista Lionel Shriver faz em Precisamos Falar Sobre o Kevin. Este é um livro para quem não busca refúgio em dramas que atenuam tudo em nome de mensagens bonitinhas. É um livro sincero e honesto como poucos.

A história é contada de forma epistolar. Eva escreve cartas para seu marido ausente, Franklin, revivendo a trajetória de romance, casamento, projetos pessoais, filhos e as situações decorrentes de cada episódio ocorrido na vida da família. Uma família destruída por uma tragédia recorrente na sociedade norte-americana: o primogênito, Kevin, planejou e executou sete colegas da escola, uma professora e um funcionário da cantina a flechadas.

Desde o começo Eva deixa bem claro que ser mãe não era o sonho de sua vida. Ela era uma bem-sucedida editora de uma revista especializada em guias para turismo pelo mundo. Uma mulher acostumada a explorar países descobrindo hotéis, lanchonetes, pontos turísticos e produzindo as melhores dicas para quem quisesse se aventurar por conta própria nestes lugares. Abrir mão de tudo isso para cuidar de um filho não fazia parte de seus planos, e desde o primeiro contato com o recém-nascido, quando este se recusa a mamar, o embate entre mãe e filho fica evidente.

Por ser narrado em primeira pessoa, este romance traz todo o ponto de vista de Eva, o que faz dele um dos poucos livros, senão o único, a retratar em detalhes a mãe de um psicopata. Uma mãe que a cada nova carta (ou capítulo) vai fazendo os balanços da vida conjugal, as ilusões e sonhos que moviam um jovem e apaixonado casal, os projetos conjuntos e pessoais que aos poucos naufragaram e, claro, as muitas decepções.

“Antes de ser mãe, eu imaginava que ter uma criança pequena do lado seria mais ou menos como ser dona de um cãozinho alegre e companheiro”.

Precisamos Falar Sobre o Kevin é um livro que em certo aspecto investiga até onde uma criança nasce psicopata ou se torna um graças ao ambiente em que vive. Existe culpa dos pais? A falta ou o excesso de atenção podem influenciar? Tudo isso é dissecado por Eva em suas cartas sem relativizações. Ela expõe todos os seus pensamentos mais íntimos de forma visceral. Não há maquiagens. Eva e Kevin sempre disputaram um cabo de guerra imaginário onde o garoto fazia de tudo para magoar, contrariar, irritar, e a mãe não conseguia esconder o fato de não gostar do filho.

Kevin é o garoto dissimulado. Ciente de que tem o pai a seu lado, e sabendo manipular os sentimentos dele, Kevin usa máscaras sociais cuidadosamente preparadas. Ele sabe muito bem os tipos de frase que precisa falar, as reações que precisa ter e até mesmo as emoções a serem demonstradas. Mas não é uma máscara constante. Ele se despe dela para provocar a mãe – como ao se masturbar de porta aberta sempre nos momentos em que ela passaria obrigatoriamente em frente ao banheiro, entre tantas outras situações descritas no livro – e para desdenhar de todos ao seu redor, não desenvolvendo nenhuma amizade a não ser com um garoto cuja relação soa mais como de servidão.

Inteligente além de sua idade, Kevin é um daqueles personagens complexos e únicos da literatura. Podemos encontrar semelhanças em Rhoda, de Menina Má, ou Frank, de Fábrica de Vespas, mas cada um tem sua particularidade. Kevin é um garoto do nosso tempo. O garoto dos fins do século XX. Isso nos aproxima demais de sua realidade, seus pensamentos, a forma como ele interpreta a sociedade a ponto de executar os colegas ciente de que essas tragédias geram audiência, interesse, movem nossa curiosidade no noticiário, cinema ou televisão.

Eva é mãe de quem se espera o amor incondicional ao filho e não superprotege-lo faz dela a vilã aos olhos do marido, para quem Kevin é um anjo caído dos céus, e até mesmo da justiça quando a julga pelos crimes do filho.

Precisamos Falar Sobre o Kevin mexe com nossos sentimentos e nos faz pensar. É um livro pesado, que causa desconforto e incômodo. Uma ficção tão real que vez ou outra nós nos deparamos com ela nos telejornais.

“Eu achava que sabia. Agora, não tenho tanta certeza”.

Avaliação: 5 Estrelas

A Autora: Lionel Shriver é jornalista e colunista do jornal The Guardian, ela também já colaborou para The Wall Street Journal, The Independent e The Economist. Viveu em Nairóbi e Bangcoc, mudando-se depois para o Reino Unido. Passou doze anos em Belfast, na Irlanda do Norte, e oito em Londres, onde mora. Criada numa família extremamente religiosa, Lionel Shriver já havia publicado seis romances antes do best-seller Precisamos falar sobre o Kevin. Este, que foi recusado por trinta editoras, rendeu-lhe o Prêmio Orange, na Grã-Bretanha, em 2005, concedido apenas a escritoras.

 

Compartilhar
Artigo anterior“O som do amor”, de Jojo Moyes, já está nas livrarias
Próximo artigoLançamento: O Amor em Primeiro Lugar, de Emily Griffin
Jornalista e aprendiz de serial killer. Assumidamente um bookaholic, é fã do mestre Stephen King e da literatura de horror e terror. Entre os gêneros e autores preferidos estão ficção científica, suspense, romance histórico, John Grisham, Robin Cook, Bernard Cornwell, Isaac Asimov, Philip K. Dick, Saramago, Vargas Llosa, e etc. infinitas…

Deixe uma resposta